segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

PATRIMÔNIO CULTURAL - PEÇAS DESAPARECIDAS - CONTO

Autor: Carlos Henrique Rangel

O homem depositou o pacote sobre a mesa e limpou o suor da testa.

- Está aí. Não foi fácil... Tinha alarme... – Disse homem olhando para o senhor de cabelos brancos que segurava um copo de bebida.

- O que estou te pagando cobre todo o risco... – Disse o homem de cabelos brancos.

- Claro senhor Jorge, eu não estou reclamando. – Disse o homem suado.

- Tome o seu cheque e pode ir.  – O homem suado limpou novamente a testa e partiu.

Jorge rasgou o embrulho e sorriu quando viu a bela imagem de Santo Antônio que havia adquirido. Deu uma volta ao redor da mesa admirando a peça e sorriu novamente.

- Mestre Piranga... Sim... Tenho certeza... Agora vou te apresentar a sua nova casa. – Disse pegando a imagem. Carregou-a por um corredor e parou na ultima porta a direita. Segurou a imagem entre o braço esquerdo e abriu o pesado cadeado. Era um quarto pequeno com apenas uma janela bem fechada.

Acendeu a luz e sorriu para as várias peças sobre uma grande mesa.

- Mais uma para a minha coleção... Santo Antônio apresento-lhe seus irmãos. – Disse ajeitando a imagem do santo entre uma Nossa Senhora do Rosário e um São José.

Correu os olhos novamente para o seu acervo e sorriu feliz. Apagou a luz e fechou a porta. O ruído ele ouviu quando ainda colocava o cadeado sobre o trinco.
Eram vozes. Parou de mexer na porta e esperou. Colocou o ouvido na porta e esperou. As vozes começaram tímidas.

- Mais um... Como vai Santo Antônio, seja bem vindo ao nosso humilde lar. – Disse a Nossa Senhora ajeitando a coroa.

- Obrigado Senhora, o prazer é todo meu... Mas... Onde estou? A última coisa de que me lembro foi de ter sido enfiado em um saco... 

- Disse o Santo olhando ao redor, custando a enxergar naquela escuridão.

- Isto aconteceu com todos nós... – Disse um São João Batista que estava mais no canto ao lado de uma Santa Efigênia.

- Fui roubado? – Perguntou o Santo assustado.

- Foi. Todos nós fomos. – Falou uma Nossa Senhora de Lourdes.

- Até hoje tenho pesadelos por causa daqueles brutos que me tiraram do altar... Olha, quebraram uma de minhas asas... – Falou um anjo mostrando a asa com um grande remendo.

- Traumatizado, coitado... Nem dorme direito. – Completou a Nossa Senhora do Rosário balançando a cabeça.

- Eu nunca pensei que isto iria acontecer comigo... Já haviam me falado destas coisas. Mas na minha igreja foi a primeira vez...

- Ai meu filho, na minha igreja aconteceu tantas vezes... Ai que saudades dos velhos tempos em que éramos tratadas com respeito... Tantos anos... Quase trezentos anos atrás. – Lamentou a Nossa Senhora do Rosário.

- A senhora esta muito bem... Não parece tão antiga... – Falou o Santo Antônio admirando a Imagem da Senhora.

- Ah meu filho, tenho alguns probleminhas, uma pequena rachadura, a pintura do meu manto está desgastada...

- Não se nota. – Disse o Santo.

- Sou uma boa peça... Acho que todas nos somos. – Completou a Senhora.

- Aleijadinho?

- Não... Jorge diz que sim. Mas fui feita pelos ajudantes dele... – Respondeu a Nossa Senhora do Rosário.

- A senhora faria o maior sucesso na minha igreja. A nossa “Nossa Senhora do Rosário” é pequena e singela – Elogiou o Santo Antônio.

- Ah meu filho, não quero “pegar” o lugar de ninguém... Queria voltar para a minha Igreja...

- Eu sou uma peça portuguesa. Vim diretamente do Porto... Chique né? – Falou uma Nossa Senhora da Conceição de mais de um metro.

- Muito... – Exclamou o Santo Antônio.

- Eu sou paulista mesmo... Taubaté. E você? – Perguntou o São José.

- Fui feito por um mestre que trabalhou muito na minha cidade... Mas não posso falar o nome dele... É segredo... – Explicou o Santo Novato.

- Conheci um Santo Antônio... Ficava no nicho esquerdo do meu altar... Pegou cupim... Uma tragédia... – Lamentou a Nossa Senhora da Conceição.

- Nossa! E o que aconteceu? – Perguntou o santo curioso.

- Levaram ele para um ateliê de restauração, voltou lindo.

- Que bom... Sei de um caso gravíssimo... Epidemia mesmo... Pegou em todo mundo. – Disse o São José pensativo.

- E aí?

- Ah,  perdemos um São João Batista, uma Nossa Senhora do Rosário e uma Santa Rita...- Explicou o São José.

- Catástrofe! Isto acontece quando a comunidade não cuida direito da igreja...

- Somos muito bem cuidados aqui. Jorge nos limpa uma vez por semana... – Falou um Cristo que segurava uma grande cruz.

- Mas isto aqui não é uma igreja... É escuro e pequeno... – Disse o Santo novato.

- Ai que saudade da minha igreja... As orações, as velas iluminando... O povo e os pedidos do povo... – Lamentou a Senhora do Rosário balançando o terço.

- Não tem reza aqui? – Espantou o Santo recém-chegado.

- Não tem nada, só escuridão e a visita do Jorge de vez em quando.

- E ele reza?

- Não... Apenas fica admirando... Nada de preces... – Respondeu o São Joaquim que até então apenas ouvia.

- Mas que coisa egoísta... Na igreja somos venerados por multidões... E as orações... Adorava ouvir os pedidos e tentar atendê-los...

- Aposto que eram sobre casamento... – Falou um Menino Jesus deitado em uma manjedoura.

- A maioria dos pedidos era sobre casamento. – Confirmou o Santo rindo.

- Ai, e as procissões... Adorava sair pelas ruas no andor. Adorada ver toda a população da cidade... Subindo ladeiras... Perdi a conta de quantas vezes sai pelas ruas... Nunca era igual. Ás vezes as novidades não eram boas. Sentia a falta de uma casa, percebia um prédio novo e feio ocupando o lugar de um sobrado lindo que existia perto da igreja... Uma mudança no ritual... Mudança para pior... – Lamentou a Nossa Senhora do Rosário ajeitando o manto.

- E os veículos... Quando vi o primeiro automóvel quase desci do andor e sai correndo. – Disse o São José alisando a barba.

- E os cantos... Na sua igreja tinha música? Na minha igreja cantava-se muito a luz de velas quando eu era uma imagem novinha. O órgão com aquele lindo som do Céu... Depois instalaram luz elétrica e a igreja ficou muito mais clara...- Falou um São Sebastião soltando um dos braços para evitar a cãibra.

- Adoro a Semana Santa e a decoração das ruas... Saia da minha Igreja e ia para a Igreja de Minha mãe... – Falou o Cristo pensativo.

- Ai meu Deus que saudades do Congado... – Lamentou novamente a Nossa Senhora do Rosário.

- Meu povo deve estar muito triste... - Falou o Santo Antônio forçando a vista, tentando enxergar melhor os companheiros.

Aposto que sim. – Falou o Menino Jesus balançando as perninhas.

- E o Jorge que nem reza... – Disse o Cristo ajeitando a cruz no ombro.

- Moço mais egoísta... – Falou Santa Efigênia.

- Será que ele não tem olhos para ver o que está fazendo com a gente e com o nosso povo? – Perguntou a Santa Luzia depositando o prato na mesa.

- Se pelo menos fosse um museu... No museu as pessoas nos visitam... Já pertenci a um museu... - Falou o Cristo.

- Museu! Deus me livre! Sou uma santa fui feita para ser adorada e louvada. No museu somos objetos de arte. – Reclamou a Santa Rita.

- Mas é melhor que isto aqui. – Falou o Cristo.

- Moço egoísta... E pensar que estou aqui há quinze anos... – Lamentou novamente a Santa Efigênia.

No lado de fora Jorge ouvia a conversa e seu coração inicialmente assustado estava agora carregado de tristeza. A princípio pensou que fosse efeito da bebida. Andava bebendo quase todos os dias àquela hora da noite. Depois achou que não. Não era o efeito de bebida. Era uma conversa real. Muito real... E séria.

As lágrimas trasbordavam dos olhos banhando-lhe a face e um grande sentimento de culpa apertava-lhe o peito. Via os altares vazios e o choro dos fiéis lamentando a perda dos santos de sua devoção. Ouvia o sermão duro do padre pedindo providências. Via os andores vazios... As beatas chorando... As procissões empobrecidas...

Via o quarto com os olhos dos santos: escuro silencioso... Sem preces, sem luz de velas... As lagrimas agora molhavam sua camisa. Enxugou os olhos e sem querer bateu com a mão no trinco provocando um forte ruído metálico.

A conversa cessou.
Jorge não precisava ouvir mais nada.

Abriu a porta e encontrou o quarto como havia deixado: em silêncio. O Santo Antônio estava lá entre o São José e a falante Nossa Senhora do Rosário.

Parou ao lado da peça de Nossa Senhora do Rosário e acariciou-lhe o rosto. Depois pegou o prato da Santa Luzia que se encontrava na mesa e colocou sobre a  mão estendida da santa.

- Meus santos e minhas santas, lamento muito o que tenho feito com os senhores e suas comunidades... Lamento do fundo do meu coração... A partir de amanhã providenciarei o retorno de todos às suas igrejas... – Disse ajoelhando no chão frio do quarto e iniciando uma silenciosa oração...
                                                                FIM 

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