sábado, 8 de julho de 2017

Carmo, arte barroca ameaçada







É a mais “rococó” das quatro igrejas paulistas do século XVII preservadas da ruína, queda e de malsucedidos restauros de pinturas originais do movimento estético nascido na França entre 1710 e 1790 e sobrevivente de maneira mais expressiva em poucos conjuntos históricos barrocos. É mais antiga do que as igrejas mineiras, conhecidas por atraírem turistas de todo o mundo, pela beleza dos altares, imagens, tetos e paredes.

Onde está esse primor ameaçado que faz brilhar os olhos, e muito, muito preocupa estudiosos da história da arte brasileira? Em Mogi das Cruzes, na Igreja Terceira da Ordem do Carmo, num “monumento único”, composto por um grande número de obras clássicas da arte barroca, encontradas em áreas como a pequena saleta, por onde as mulheres que participam do bingo semanal das tardes de terça-feira passam entre o banheiro e o salão (bem mais novo), onde as mesinhas dispostas as agrupam, e há um vozerio alegre.

Cobre o vestíbulo, entre a sacristia e as dependências mais novas do conjunto das igrejas construídas pela Província de Santo Elias, em 1633, uma das pinturas mais antigas do Estado de São Paulo: São Simão Stock recebe um escapulário de Nossa Senhora do Carmo, em meio a imagens da fauna e flora brasileira, tucanos, cobras e papagaios pintadas com a técnica do Spolvero, onde o artista primeiro desenha as imagens numa folha, pontilha os traços das bordas e transfere esse molde para (no caso) o forro.

Além dessa peça, de 1750, todo o conjunto de obras, santos e afrescos coloca a Ordem Terceira do Carmo ao lado de três outras construções católicas de importância na arte e arquitetura paulista: as igrejas do Carmo de São Paulo e de Itu, e a Candelária de Itu. A raridade das pinturas mogianas ganha relevância com o término da tese de doutorado de Danielle Manoel dos Santos Pereira, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Nesse estudo, a pesquisadora conseguiu avançar em descobertas sobre as origens dos autores das cenas religiosas ali decoradas e pouco conhecidas dos mogianos.

Terça-feira última, O Diário acompanhou as gravações de um programa da TV Unesp sobre a pesquisa sobre as pinturas nos forros do Carmo, que começa a ser divulgada em revistas especializadas pela mineira de 34 anos nascida em Diamantina, residente em São Paulo desde a infância. Ela trabalhou no Museu das Igrejas do Carmo (MIC), entre 2010 e 2012, durante a vigência do Ponto de Cultura Municipal, bancado pela Prefeitura de Mogi das Cruzes, que até hoje não foi pago integralmente. Danielle Pereira estava acompanhada de seu orientador no doutorado, o artista plástico Percival Tirapeli, professor e doutor de História da Arte Brasileira da Unesp, integrante do Condephaat e autor de livros sobre o assunto.

Vem do professor a frase mais urgente ouvida durante a visita guiada ao Carmo sobre as atuais condições desse acervo: “Está lastimável. Desde 1977 visito o Carmo com frequência e desde então, nada foi feito para preservar essas pinturas. A madeira está na casca, o cupim acelera a degradação. Sorte a nossa que o cupim devora a madeira, não a pintura (sorri, com alívio). O telhado está um pouco melhor, mas o forro, está em condições muito ruins”.
Está mesmo. Quando se vence a escadinha estreita de madeira que leva ao coro e se observa de perto as coloridas reproduções dos santos e bispos da história carmelita, os vãos corroídos pelos insetos e encharcados pelas goteiras realçam ainda mais a degradação.

Entre as tábuas do forro, as manchas se alargam, dissolvendo a pintura antiga, madeiras brutas cobrem peças que se perderam, encorpando o diagnóstico: “Veja que os rostos, estão mais preservados, um milagre do Carmo. Mas, no geral, a deterioração avança”, observa Tirapeli, que não larga uma pequena máquina fotográfica.

No forro da nave da Ordem Terceira, o artista Manuel do Sacramento primeiro desenhou ricamente o cenário com detalhes das expressões, roupas e as partes descobertas dos corpos dos personagens, como as mãos. “Ele fez um desenho primoroso no forro, salientando partes dos rostos, como os olhos e bocas, para dar uma imagem ‘fotográfica’ a quem olhava do chão”, diz Tirapeti. O chão fica a 12 metros de distância do teto. “Ele fez a obra para ser apreciada de baixo”, encerra ele.

“Um monumento único”, diz professor

O historiador Percival Tirapeli conheceu as Igrejas do Carmo no início da carreira mapeada pelos livros de arte publicados, exposições, curadorias, supervisão e produção de pesquisas sobre a arte brasileira. Nametade da década de 1970, ele fez a dissertação sobre as igrejas do Vale do Paraíbae e visitou Mogi das Cruzes e Região. Depois disso, a carreira de pesquisador flui, e ele retornou a Mogi, inúmeras vezes, lecionou, inclusive, na Universidade Braz Cubas (UBC). Para ele, “Mogi das Cruzes é um monumento único porque é mais antigo do que o de Itu e construído 100 anos, pelo menos, antes das igrejas de Minas”.

40 anos separam a primeira visita dele ao Carmo à última, terça-feira passada. “É uma constatação, as pinturas estão se perdendo. Tivemos a reforma do telhado, mas só. Se a comunidade não se organizar, buscar o apoio de empresas, por meio da Lei Rouanet, não resolve isso”.

O professor vai direto ao ponto quando questionado sobre a dura lida de quem vê esse patrimônio decaído pela valorização do moderno, sem o equilíbrio entre o novo e o antigo, como ocorre no Centro de Mogi: “Somos (um povo) incultos. Não aprendemos história na escola. E o brasileiro sempre gostou do moderno”.

Juntos, esses fatores provocam o que há de pior para uma sociedade, o “apagamento a memória”. Ao entrar no vestíbulo, onde está a pintura salva do desaparecimento, quando a Igreja do Carmo caiu e foi reconstruída, preservando afortunadamente a obra, Percival assusta-se com um parafuso à vista. “Veja essa parafuso numa pintura chinesa. É o fim”.

Ele acompanhou duas restaurações recentes, que duraram anos, no Carmo de São Paulo e na Candelária de Itu, e lança: “Esses restauros saíram porque teve quem os defendesse. É própria comunidade que precisa se articular, pressionar pela política”, diz. A pressão política é divisor de águas. “Em Itu, tivemos recursos de indústrias e da Prefeitura. Não adianta esperar pelo governo federal”.

Foi assim, aliás, que o Carmo sobreviveu a uma “loucura”, quando Mogi das Cruzes teve muito próxima de perder seu mais antigo e caro conjunto histórico. “Felizmente, o Carmo foi defendido até por Lúcio Costa, que escreveu: ‘querem destruir o Carmo’ e essa loucura foi abandonada”.

Percival Tirapeli percorre o interior das duas igrejas do Carmo, para diante de raridades como o Cristo Crucificado na Ordem Primeira que ganha luz incrível, no meio da tarde, quando o sol bate na janela lateral e reproduz a hora da morte de Jesus. Olha a grandiosa imagem de Elias, no forro do altar-mor, que ainda não se sabe quem pintou, mas tem beleza única pelas noções históricas nele contidas, perspectivas, cores… “Muitas, muitas pessoas vão a Minas, sem conhecer as igrejas de São Paulo, mais antigas e expressivas na arte. E dizem, mas em Minas tem isso, tem aquilo. São Paulo tem mais e perdeu muito com o tempo”, afirma.

A visita animou o grupo Fotos Antigas de Mogi das Cruzes, mantido por Luiz Miguel Franco Baida, João Camargo e Robson Shimizu. O trio planeja lançar uma campanha pela preservação desse patrimônio, em parceria com Danielle Pereira. “Sem uma mobilização, perderemos mais ainda, a deterioração das pinturas não para. Não podemos perder mais tempo”, defende Baida. (E.J.)

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